Carregando...
Bruno da Silva Amorim - Articulista
Área do articulista

Gestor Público pela Universidade Federal de Pelotas, Especializando em Contabilidade Pública pela Universidade Estadual do Ceará e Acadêmico de Direito pela UCPel.

1

Artigo do articulista

Saúde Suplementar e SUS: A dicotomia entre o público e o privado

O cidadão brasileiro que opta pela saúde suplementar enfrenta uma complexa dicotomia, ao tentar equilibrar dois direitos que, à primeira vista, deveriam ser complementares, mas que na prática geram tensões e diversos desafios. De um lado, o artigo 196 da Constituição Federal de 1988 assegura o direito à saúde como universal e gratuito, a ser garantido pelo Estado por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).

De outro, o artigo 199 concede ao cidadão a liberdade de contratar serviços privados de saúde, criando um espaço para a adesão à saúde suplementar, regulamentada pela Lei 9.656/1998 e pelo Código de Defesa do Consumidor.

Essa dualidade provoca uma interação densa entre o público e o privado, gerando um sistema no qual o cidadão se torna credor tanto do SUS quanto do serviço privado contratado. Ao aderir a um plano de saúde, o indivíduo estabelece uma relação contratual pautada no princípio do mutualismo, onde os recursos depositados pelos participantes formam um fundo comum gerido pela operadora.

 

A Dicotomia entre o Público e o Privado

No coração dessa dicotomia está a interdependência entre o SUS e o sistema de saúde suplementar. Embora o SUS tenha sido projetado para ser um provedor universal, gratuito e acessível, seu desempenho aquém das expectativas, caracterizado por longas filas e recursos insuficientes, acaba impulsionando o crescimento do setor privado. Muitos cidadãos, buscando escapar dessas limitações, optam por contratar planos de saúde privados, mas essa escolha não os exime de continuar sendo titulares de direitos no sistema público.

Aqui reside uma contradição: o cidadão que paga por um plano privado assume dois papéis — é simultaneamente consumidor no mercado e titular de direitos no sistema público.

Essa dualidade evidencia uma questão central: ao tentar prover um atendimento de qualidade no setor suplementar, as operadoras se veem pressionadas pela crescente demanda e pelas amplas obrigações impostas pela regulamentação. O aumento no rol de procedimentos obrigatórios, ditado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), acaba fragilizando o equilíbrio econômico-financeiro das operadoras.

O Estado, ao transferir parte de suas responsabilidades constitucionais para o setor privado, contribui para sobrecarregar o cidadão, que agora arca com custos que, em princípio, deveriam ser cobertos pelo SUS.

As operadoras de saúde suplementar no Brasil se sustentam sob o princípio da especialização, focando na administração de riscos. Ao gerir os custos relacionados à assistência dos beneficiários, as operadoras buscam diluir o impacto financeiro e garantir a viabilidade do sistema. Entretanto, essa gestão de riscos é continuamente desafiada por fatores como o envelhecimento populacional e a alta sinistralidade entre idosos.

Essa "pressão" econômica evidencia um ponto delicado: a regulação estatal, ao ampliar os direitos dos consumidores, acaba impondo desafios crescentes às operadoras, que, para se manterem financeiramente viáveis, precisam repassar os custos ao consumidor. O ciclo se torna autossustentável, mas fragiliza a essência do mutualismo, na qual a diluição dos riscos deveria ser suficiente para garantir o equilíbrio entre oferta e demanda.

 

O Mutualismo 

O mutualismo, que rege o funcionamento dos planos de saúde, é um conceito que pressupõe a colaboração mútua entre os participantes. No entanto, o cenário atual, com o constante aumento das coberturas obrigatórias sem os devidos ajustes nas contraprestações mensais, transforma esse princípio em uma armadilha.

A tentativa de ampliar o acesso e os direitos dos consumidores acaba sobrecarregando o próprio sistema privado, que se vê sem condições de diluir os custos adicionais de forma equitativa.

Aqui, a regulação, por meio da imposição de um plano-referência que estabelece um mínimo de cobertura, gera um efeito paradoxal. Ao buscar proteger o consumidor, o Estado transfere para ele a responsabilidade de financiar um sistema que deveria ser, em parte, sustentado pelos recursos públicos.

A sobrecarga imposta às operadoras não apenas eleva os custos dos planos, mas também ameaça a sustentabilidade do sistema como um todo.

 

Os limites da intervenção estatal 

A intervenção estatal na saúde suplementar deve ser analisada sob uma ótica técnico-econômica, visto que a Lei nº 9.656/1998 estabelece uma série de exigências que, embora necessárias para proteger os direitos dos consumidores, muitas vezes não consideram os efeitos econômicos dessas regulamentações. Ao exigir das operadoras uma descrição detalhada dos serviços oferecidos, além da demonstração de capacidade econômica, a regulação visa garantir que as empresas cumpram suas obrigações.

No entanto, o excesso de regulamentação pode, ironicamente, gerar o efeito oposto.

A intervenção estatal na saúde suplementar no Brasil revela uma tensão entre a proteção do consumidor e a eficiência econômica das operadoras. A alta carga tributária e a forte presença do Estado no setor da saúde colocam o Brasil em uma situação única, onde o sistema público falha em atender à demanda, e o setor privado é sobrecarregado com responsabilidades que deveriam ser do Estado.

Essa sobrecarga se torna especialmente evidente em momentos de crise, quando o SUS não consegue absorver a demanda, e o setor suplementar é forçado a intervir.

Nos Estados Unidos, o debate sobre a saúde foi intensificado com o ObamaCare, que trouxe à tona questões sobre o papel do governo na garantia do acesso à saúde. No Brasil, o contexto é diferente, mas o dilema é o mesmo: até que ponto o Estado deve intervir na saúde suplementar, e quais são os limites dessa intervenção? A regulamentação excessiva, sem um correspondente ajuste econômico, pode inviabilizar o funcionamento do mercado, fragilizando o próprio sistema que deveria proteger.

 

Conclusões 

A dicotomia entre o direito à saúde pública e à saúde suplementar no Brasil reflete um dilema profundo: o cidadão se encontra preso entre dois sistemas interdependentes, sem que nenhum deles atenda plenamente às suas necessidades. O setor privado, ao ser sobrecarregado com obrigações impostas pela legislação, perde sua capacidade de ser uma alternativa viável, enquanto o sistema público continua a falhar em prover um atendimento adequado e universal.

É necessário que se encontre um equilíbrio entre a ampliação dos direitos do consumidor e a sustentabilidade econômica das operadoras de planos de saúde. O Estado, por sua vez, não pode transferir de forma indevida suas responsabilidades para o setor privado, sob o risco de fragilizar ainda mais o sistema de saúde suplementar e prejudicar ainda mais o acesso dos cidadãos a serviços de qualidade.

A proteção do direito à saúde, seja no SUS ou no setor suplementar, deve ser repensada, já que a regulação, embora essencial, deve ser ajustada para não sufocar a iniciativa privada e, ao mesmo tempo, garantir que o cidadão não seja onerado com custos que deveriam ser suportados pelo Estado. 

Artigos Anteriores

A Responsabilidade Civil do Estado - uma análise histórica-conceitual

A responsabilidade civil do Estado constitui um dos pilares fundamentais do Direito Administrativo brasileiro, determinando que o poder público...

Serviço público e greve – o lugar para negociação coletiva?

A greve, reconhecida como um direito fundamental pela Constituição de 1988, estende-se tanto aos servidores públicos quanto aos...

A transigência legal – discricionariedade e limites no setor público

O Direito Administrativo é responsável por regular a função administrativa do Estado e das suas entidades. Dentre seus...

Lei 14.133/21 – avanços e lacunas no processo licitatório brasileiro

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS LICITAÇÕES NO BRASIL A busca por um processo licitatório eficiente não é...

Direitos ou finanças? A balança sutil entre a reserva do possível e o mínimo existencial

As teorias da Reserva do Possível e do Mínimo Existencial desempenham um papel fundamental à...

Advocacia pública no estado democrático de direito: advogados de governo ou de estado?

A Advocacia Pública desempenha um papel preponderante no Estado Democrático de Direito, cujo fundamento repousa na...

Contextualização histórica do voto feminino no Brasil sob um olhar democrático à sua obrigatoriedade

Contextualização histórica do voto feminino no Brasil sob um olhar democrático à sua obrigatoriedade Autores: Bruno...

Ética na administração pública e democracia

Autoria: Bruno da Silva Amorim; Vitória Medeiros Dias; Victor Alfaya A ética na administração pública é...

Além do direito: a margem de liberdade dos burocratas de nível de rua na implementação de políticas públicas

Além do direito: a margem de liberdade dos burocratas de nível de rua na implementação de políticas...

A TRIPLA RESPONSABILIZAÇÃO DOS SERVIDORES PÚBLICOS - UMA ANÁLISE DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL

A TRIPLA RESPONSABILIZAÇÃO DOS SERVIDORES PÚBLICOS - UMA ANÁLISE DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL  GUSTAVO RAFFI...

O DIREITO E OS PROCESSOS DE GESTÃO DE PESSOAS NO SERVIÇO PÚBLICO

INTRODUÇÃO   A gestão de pessoas é compreendida como uma área da administração que se encarrega do...

Flagrante preparado

Flagrante preparado – crítica de sua ilegalidade à luz do direito penal Autoria: Bruno Amorim e Nathalia Lisboa Dias RESUMO O...

Adoção em situação de divórcio: Direitos e Responsabilidades

RESUMO O presente artigo busca analisar a problemática da adoção da criança e do adolescente no que tange a...